O ano era 2018, eu estava no curso de formação da magistratura e deveria passar por várias experiências práticas, envolvendo audiências, entre outras, nas varas de violência doméstica. Ao chegar ali, pensei que estaria diante de mais um caso repugnante, do chamado “homem que bate em mulher”, como tantos que eu já tinha visto no noticiário. Mas não: quem me aguardava era uma mãe, já avó e divorciada, que possuía medida protetiva em relação ao seu próprio filho.
Ela contou que ele a agredia em virtude do abuso de álcool. Ele estava preso e desejava vê-la para pedir perdão; devido à proibição de contato, ele não podia enviar cartas para ela. Ela recusou e assim foi embora, sem ver nem falar com ele. Ao ser ouvido, ele chorou, confessando as agressões e dizendo que havia perdido o casamento, o emprego e a guarda do filho em virtude da dependência.
Esse foi meu primeiro contato com uma das faces da violência doméstica e suas consequências mais drásticas: a desagregação de uma família, envolvida em dor e desolação, que merecia um olhar de fora do sistema tradicional da justiça criminal.
De lá para cá, infelizmente, aconteceram muitos casos parecidos, de filhos (inclusive adolescentes) agredindo, ameaçando, levando pertences de seus pais, mães, irmãos (alguns idosos e deficientes), em virtude de abuso de álcool e/ou drogas. E em paralelo a presença constante da violência doméstica mais conhecida e falada, entre companheiros ou ex-companheiros, muitas vezes provocada por violência de gênero, ou seja, resumidamente, apenas porque a mulher é mulher, levando, no extremo, a vítima a mudar de endereço e seu paradeiro se tornar desconhecido, ou mesmo à sua morte.
No último dia 07, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completou 18 anos de existência. Ela é considerada uma das mais avançadas do mundo e busca coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher, estabelecendo medidas especiais de proteção, assistência e punição aos agressores.
A lei é fruto de muita mobilização da sociedade civil para proteção das mulheres no âmbito doméstico e familiar. Uma de suas maiores expressões, no dia a dia forense, são os pedidos de medidas protetivas de urgência formulados pelas mulheres, que podem envolver a suspensão da posse ou restrição do porte de armas por parte do agressor, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, proibição de aproximação da ofendida ou de contato com ela, prestação de alimentos provisionais ou provisórios, comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação e acompanhamento psicossocial por meio de atendimento individual e/ou grupo de apoio.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos últimos quatro anos mais de dois milhões de ocorrências relativas à violência se materializaram em ações judiciais. Por trás desses números, acredita-se haver o amadurecimento da sociedade em relação aos direitos das mulheres.
Em José Bonifácio-SP, nosso local atual de atuação, houve a recente criação de Grupos Reflexivos para a participação de homens autores de violência de violência autuados pela Lei Maria da Penha. O projeto tem como objetivo a conscientização e responsabilização dos autores de violência, tendo como parâmetro a Lei Maria da Penha, a transformação e rompimento com a cultura de violência contra as mulheres, a desconstrução da cultura do machismo e o combate à violência contra as mulheres, com ênfase na violência doméstica, com participação do Ministério Público e do Poder Judiciário no encaminhamento dos autores de violência (Lei municipal nº 4.261/2023).
Com isso, espera-se reduzir o número de casos de violência doméstica e familiar na Comarca e, especialmente, evitar a perpetuação do ciclo de violência por parte dos agressores. A participação do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Poder Público local e da sociedade civil são essenciais para a consecução de tais objetivos.
A mensagem que gostaríamos de passar nesse Agosto Lilás é: a protetiva está à disposição de todas que sofrem violência em seu núcleo familiar, mesmo que não haja parentesco sanguíneo; mesmo que não haja lesões físicas; mesmo que não haja inquérito policial ou ação em andamento; e independentemente de orientação sexual.
Ela é importantíssima para que a vítima não só receba proteção em relação ao agressor, mas também acolhimento nos serviços públicos de saúde e assistência social, inclusive acompanhamento psicossocial, e orientação jurídica, tudo totalmente livre de qualquer julgamento moral.
Se você for vítima de qualquer de violência, denuncie! Buscar ajuda, por meio das protetivas, é um ponto de partida para um recomeço e uma nova perspectiva de vida, que, com a ajuda de uma rede de apoio, é possível construir. Não importa o que tenha acontecido na sua vida: você merece uma vida digna e sem violência!
Carolina Castro Andrade Silva
Mestre em Direito
Juíza de Direito da 1° Vara de José Bonifácio
Júlia Campos Leite
Mestre em Direito
Supervisora de Serviço do 1° Ofício de José Bonifácio